segunda-feira, 14 de julho de 2008

NHS, o sistema de saúde inglês - parte II

Peguei um táxi e voltei para casa, já caindo de dor. Eu tinha coberto a pé umas quatro, cinco quadras, mas com dor, parecia que eu tinha participado de uma maratona. Não conseguindo mais ficar em pé, resolvi voltar à clínica só no dia seguinte.

Na minha segunda incursão, já com o contrato de aluguel atualizado como comprovante de residência, nova surpresa.

"Preciso de um atendimento de emergência. Não consigo ficar em pé ou sentada por mais de cinco minutos sem sentir uma dor imensa, que deixa a minha perna direita paralizada"

"Ah, a senhora terá que aguardar pelo menos três dias"

"Desculpe, não entendi"

"Hoje vou completar seu cadastro. Aí é preciso esperar pelo menos um dia para marcar a primeira consulta com o clínico-geral. Só depois e, se ele achar necessário, é que a senhora será encaminhada para um especialista"

Pausa dramática.

"Mas, como eu disse, estou com dores fortes que me impedem de caminhar ou sentar"

"Desculpe, esse é o procedimento"

Amaldiçoando Deus e o mundo, marquei a consulta com o clínico-geral e voltei para casa. A dor só piorava.

No dia seguinte, pela manhã, depois de muito perturbar a recepcionista, consegui que ela me colocasse na fila para atendimento de emergência, no fim da tarde. A dor era tão intensa que eu mal conseguia respirar - que dirá ficar em pé.

Quando a médica finalmente me atendeu, senti um alívio. Ela foi muito gentil, perguntou o que eu sentia e descrevi a dor na base da coluna. Disse que tudo começou com uma dormência no pé direito, então progrediu para uma dor latente na lateral da perna que depois se espalhou pela coluna.

Muito segura, ela mandou que eu ficasse em pé, levantasse a saia e me curvasse para a frente. Depois, que deitasse na maca e levantasse uma perna de cada vez. Ok. Tudo não demorou mais que três minutos. Eu mal consegui fazer o que ela pedia sem ajuda. A dor impedia que eu me curvasse ou me deitasse com facilidade.

Ela sentou então no computador, a tela no site da NHS. Muito calmamente, digitou "lower back pain". Abre-se então uma nova página. Para minha surpresa, a médica começa a ler um diagnóstico online de dor nas costas. Eu não sabia se ria de nervoso ou chorava.

O texto, lido com toda a calma do mundo, dizia que dor nas costas era uma doença comum, que ia e vinha e costumava melhorar com o tempo. A médica leu o texto na tela uns cinco minutos. Até a Anna começou a protestar, chorando horrores.

Ela leu até o disclaimer!!! "If your condition is non-urgent, you can expect to see a doctor within two working days or a health professional such as a nurse within one working day. If you don't need an appointment within two working days, you can also book in advance if this is more convenient for you. It is important to keep your appointment, or notify the surgery if you have to cancel or change it". Eu estava boquiaberta.

Resumo da ópera: a médica, que fez o diagnóstico pelo computador - coisa que um macaco não adestrado era capaz de fazer -, me disse para tocar vida normal, não mudar a minha rotina. Em alguns dias, a dor ia melhorar. Por via das dúvidas, me receitou um simples paracetamol.

Ah, claro, eu mal conseguia andar há semanas e a dor ia magicamente embora. Tá.

Fui embora irritada, caí no choro na rua. Não aguentava de dor. Como já era tarde, fui para casa.

No dia seguinte, paguei, feliz da vida, 350 libras por uma consulta numa clínica particular. O clínico geral, recomendado pelo chefe do meu marido, me atendeu na hora. Me pediu para sentar e me pediu que descrevesse meu problema. Repeti o discurso do dia anterior. Lá fomos nós para a maca. Levanta a perna daqui, levanta dali, curva do outro lado. Olhei o relógio. Dois minutos. Lá veio ele, taxativo: "Estou convencido de que é um caso de hérnia de disco. Vou recomendá-la a um neurologista, mas seu caso parece ser o de uma hérnia de disco clássica. Os sintomas são bem compatíveis".

Não sabia se chorava ou se ria. Agora, de felicidade. Finalmente meu problema tinha nome e sobrenome e, assim, um plano de ação. Que diferença para o NHS!

Mais 300 libras depois, o neurologista, que me atendeu de emergência, bateu o martelo: "É hérnia de disco". A ressonância magnética só ajudou a identificar onde, na minha coluna, estava a hérnia. O plano de ataque: remédio adequado (relaxante muscular mais anti-inflamatório), compressas quentes na base da coluna, fisioterapia três vezes por semana e acupuntura). Meu caso não é cirúrgico e, segundo os médicos, em dois meses eu devo voltar à vida normal.

O melhor de tudo: meu seguro de saúde americano vai bancar tudo.

Lição: quando a esmola é demais, o santo desconfia. Sistema público de saúde da Inglaterra, tô fora!!!

NHS, o sistema de saúde inglês - parte I

Para quem mora em Pittsburgh - eleita, em 2007, a melhor cidade para se viver nos EUA (http://www.post-gazette.com/pg/07116/781162-53.stm) e casa de um dos melhores hospitais americanos(http://www.upmc.com/Communications/MediaRelations/NewsReleaseArchives/2007/July/USNewsBestHospitals.htm) - é frustrante deparar-se com o sistema de saúde público da Inglaterra.

A proposta do NHS - National Health Service (http://www.nhs.uk/aboutnhs/Pages/About.aspx) - é garantir a todos o acesso a medicina de qualidade, desde o tratamento de uma simples gripe, passando por cirurgias e tratamentos de emergência. Mas, tudo isso é muito bonito no papel. Na prática, o buraco é bem mais embaixo.

Coloquei o sistema à prova no mês passado e não gostei nem um pouco do que eu vi. A princípio, parecia tudo muito simples. Você entra no site do NHS, se cadastra no sistema público de saúde e escolhe uma clínica na sua área. Basta digitar o CEP e o site localiza todas as clínicas a uma distância x da sua casa. Minha primeira impressão não poderia ser melhor. Em questão de minutos eu estava no sistema e de posse de uma lista de clínicas a escolher. Melhor: era possível ver o currículo de alguns médicos online, o que facilita bastante uma escolha assim, sem referências, às escuras. Escolhi uma clínica a 0.5 milhas aqui de casa, com médicos especializados em saúde da mulher, saúde do homem e também pediatras. Assim, todos aqui estavam cobertos.

Uma dor intermitente na perna que vinha me incomodando há semanas e tornando meus passeios londrinos cada vez mais difíceis parecia a oportunidade perfeita para ver como o NHS funcionava na prática. Mas, como boa brasileira, fui deixando para a última hora até que, já não aguentando mais de dor (que agora já chegava até a base da coluna) e mal conseguindo sentar ou ficar em pé por mais de cinco minutos, resolvi recorrer ao sistema público inglês. E aqui, tudo passa antes pelo clínico geral.

Anotei o endereço da clínica e lá fui. Chegando lá, passaporte e comprovante de residência na mão - just in case, precavida que sou - perguntei o que era preciso para o atendimento de emergência.

"Vc é registrada no NHS?", me perguntou a recepcionista, sem muita paciência.

"Sim, fiz o registro online", respondi, morrendo de dor e mal suportando ficar em pé.

"Online? Não serve. Você tem registro aqui?"

"Não. Posso fazer um agora?"

"Onde você mora?"

"SW7"

"Ah, não podemos atendê-la. Você tem que procurar uma clínica na sua àrea"

"Mas eu procurei no site do NHS e a busca me indicou essa clínica como uma das que atendia o meu CEP"

"Não, sinto muito. O site deve ter errado. Você não pode ser atendida aqui"

Quando a esmola é demais, o santo desconfia. Claro que a coisa toda não poderia ser tão simples e o site do NHS tinha que dar o endreço errado. Surreal.

Uma outra recepcionista, talvez sensibilizada pela minha expressão de dor, catou um papel e marcou com caneta quatro endereços. Eram clínicas que, segundo ela, cobriam o meu CEP e poderiam me atender. Agradeci e segui meu caminho, com a dor ficando cada vez mais forte.

Olhei no mapa e lá fui para a primeira clínica marcada. Balde de água fria. Eles só faziam planejamento familiar. Voltei à folhinha da recepcionista e resolvi tentar a segunda clínica. Foram 15 minutos andando - com a dor cada vez pior, subindo pelas costas - e nova negativa: "Não, não atendemos seu CEP". Dez minutos depois, nova clínica e, surpresa: não cobriam a minha área. Detalhe: o maldito papelzinho do NHS dizia que aquelas eram as clínicas que atendiam a minha região.

Com minha paciência cada vez menor, segui para a quarta clínica.

"Vocês atendem SW7?"

"Sim. Você tem registro?"

"Só no site"

"Identidade e comprovante de endereço, por favor"

Eu suava frio de dor ao entregar os documentos à recepcionista, mas tentava me consolar pensando que logo seria atendida.

"Não posso fazer seu registro"

"Por que?"

"Seu contrato de locação (meu comprovante de residência) venceu ontem"

Tínhamos assinado um contrato temporário - caso não gostássemos do apartamento, que foi alugado à distância - e depois o renovamos até agosto. O contrato nas mãos dela era esse primeiro. Expliquei a situação e perguntei se, como era uma emergência - eu agora mal conseguia ficar em pé e me contorcia de dor após a peregrinação pelas clínicas - eu não poderia trazer o contrato atualizado depois.

"Não"

Ela folheou meu passaporte e topou com o carimbo da imigração.

"Aí mostra que posso ficar na Inglaterra por seis meses"

"Não basta"

Lembrei então do documento que tinha pego na saída de casa. Era uma carta do banco, nos agradecendo pela escolha do Barclays como nossa instituição financeira, falando serviços disponíveis e tal. Pensei: deve servir como comprovante. Lá estava, num papel com o selo do banco e com data de alguns dias atrás, meu nome e endereço.

"Desculpe, não posso aceitá-lo"

"Posso perguntar o motivo? O documento tem data, meu nome e meu endereço"

"Só podemos aceitar extratos bancários"

"Mas eu acabei de abrir a conta. Ainda não recebi o extrato mensal"

"Sinto muito"

"Mas aí consta o meu endereço e o meu nome"

"Sinto muito. A senhora terá que voltar outra hora"

"Mas eu estou morrendo de dor e mal consigo andar, preciso ser atendida por um médico"

"Sinto muito"

Eu só me lembrava, nessa hora, da Carol e do Gus, que sofrem com o sistema público de saúde do Canadá - onde, infelizmente, as coisas são bem, bem piores do que em Londres (http://carolgustoronto.blogspot.com/2008/06/canad-sade-e-imigrao.html). E me deu uma saudade enorme de Pittsburgh...